quarta-feira, março 25

Neruda, o Drummond do Chile

Puedo escribir los versos más tristes esta noche./Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,/ y tiritan, azules, los astros, a lo lejos." El viento de la noche gira en el cielo y canta./ Puedo escribir los versos más tristes esta noche. Assim começa um dos poemas mais conhecidos de Neruda, publicado pela primeira vez em 1924 em Veinte poemas de amor y uma canción desesperada. Sobre o poeta e sua obra, haveria muito a dizer, porém me atenho aos propósitos deste blog e conto apenas fatos relacionados à viagem. Aqueles que quiserem conhecer ou reler os poemas do autor poderão acessar o site da Fundación Neruda em http://www.fundacionneruda.org/antologia1.htm


Os chilenos reverenciam enormemente a memória do poeta, afinal ele trouxe para o país o segundo Nobel de Literatura, em 1971 (o primeiro havia sido concedido a Gabriela Mistral em 1945). Para um continente com tantos grandes poetas e escritores e apenas 3 Nobel, a premiação tem valor ainda maior. (O outro premiado da América do Sul foi o colombiano Garcia Márquez, em 1982). Uma parte da vida de Dom Pablo − como a ele se referem alguns guias − se tornou um pouco mais conhecida do brasileiro comum com a exibição do filme O Carteiro e o Poeta (Itália, 1994), cuja historia gira em torno da amizade de Neruda com Mário Ruopollo, carteiro de uma humilde e pacata cidade do Mediterrâneo, na qual o poeta estava exilado.

Neruda exerceu uma longa carreira diplomática e viajou por todo o mundo, tendo estado no Brasil em várias ocasiões, a primeira delas em 1945, a convite de Jorge Amado e do Partido Comunista Brasileiro. Muitas das recordações dessas viagens podem ser vistas nas três casas que mantinha no Chile, hoje pontos turísticos obrigatórios. Nessas casas, conservadas como as deixou o poeta, encontram-se objetos de arte e coleções variadas como conchas, garrafas, bonecos, carrancas e insetos, além de bibliotecas.


Dom Pablo tinha uma casa em Santiago − La Chascona (a despenteada); uma em Valparaíso − La Sebastiana; e a terceira na Isla (ilha) Negra. Visitei as duas últimas e não pude evitar a emoção, a marca do ‘compañero’ está em cada detalhe. Embora La Chascona fosse a mais próxima, no bairro Bella Vista, acabei não indo conhecê-la. Talvez não estivesse preparada para rememorar os tristes acontecimentos vividos por Neruda naquele lugar (ainda agora, enquanto escrevo sobre isso, uma perturbação toma conta de mim). Amigo pessoal de Allende, ele já estava muito doente quando a ditadura de Pinochet tomou de assalto o país em 11 de setembro de 1973. Sua casa foi invadida e revirada pelos militares, que procuravam por ‘comunistas escondidos ali’. Neruda faleceu no dia 23, doze dias depois do presidente Allende. Matilde Urrutia, sua mulher, se manteve firme e, ainda que vigiada por um enorme aparato policialesco, realizou o velório ali mesmo em La Chascona, hoje sede da Fundação Neruda.

As casas onde Neruda viveu, transformadas em museu, estão muito bem conservadas. As visitas, feitas com horário marcado e em pequenos grupos, são acompanhadas por guias zelosos em fazer cumprir a determinação de não fotografar o interior ou tocar nos objetos. Em ambas as casas, a de Valparaíso e a da Isla Negra, o mar é personagem coadjuvante. Abaixo, o mar visto de uma das janelas de La Sebastiana e um detalhe de uma escadinha externa.

















Foi uma espécie de decepção para mim constatar que a Isla Negra não era exatamente uma ilha e tampouco era negra. As palavras isla e negra haviam criado na minha mente uma expectativa diferente. Pensava no poeta escrevendo seus poemas numa casinha no alto de um penhasco, o mar batendo com força nas rochas, os relâmpagos acendendo eventualmente o céu em noites de tempestades, o vento varrendo tudo pela frente... E, de repente, o que vi foi um sol que ardia na pele, um mar azul imenso e uma energia incrível circulando naquele ambiente. Ah, esse maldito romantismo que distorce a realidade! Provavelmente o real e o imaginário pudessem estar mais próximos numa tarde de inverno, mas não num dia de pleno verão em fevereiro. Apesar de tudo, foi uma experiência muito prazerosa.


















'Confieso que he vivido' é o título do livro de memórias escrito por Neruda e publicado em março do ano seguinte à sua morte, em Barcelona, Espanha. Eu acho esse título o máximo, à altura da sensibilidade e da grandeza do autor. Estando na Europa naquela época, pude comprar o livro e ‘devorá-lo’ ainda sob o impacto do assassinato de milhares de chilenos. O golpe do Chile atingiu profundamente todos aqueles que acompanhavam com simpatia uma experiência socialista na América Latina, numa época em que a maioria dos países, inclusive o Brasil, estava sob o jugo de ditaduras militares.

Matilde Urrutia foi a terceira e última mulher de Neruda. Conheceram-se muito
jovens, reencontraram-se no início dos anos 40, e desde então não se separaram mais.Os inúmeros poemas que Neruda escreveu para Matilde são prova da intensa paixão que viveram. Depois da morte do poeta, Matilde impôs-se a difícil tarefa de preservar, durante os anos de chumbo de Pinochet, o legado do marido. Foi incansável. E mesmo não sendo escritora, fez questão de registrar em livro sua rica experiência como mulher do poeta. Morreu em 1985, antes de ver publicada
‘Mi vida junto a Pablo Neruda’.

Os corpos de dom Pablo e sua Matilde foram sepultados, lado a lado, num terreno em frente ao mar que tanto amavam, ali mesmo na Isla Negra.

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