segunda-feira, fevereiro 22

Verão visto da varanda

Querido anônimo de além-mar
Amanhã serão dez dias desde a fatídica queda que me custou o pé imobilizado e muitas horas de desconforto. É pleno verão e, em especial na minha cidade, as temperaturas quase todo dia se aproximam dos quarenta graus. Mas só vejo o sol brilhando da varanda de casa, estou literalmente de molho. Vamos ver o veredicto do médico amanhã. Eu cá espero me livrar das ataduras e tala e passar para uma botinha mais confortável. Torça por mim.

terça-feira, fevereiro 16

Meu pé esquerdo


Brindou-nos a perfeição divina com alguns órgãos em duplicidade: dois pulmões, dois rins, ovários, olhos, orelhas, e também dois braços, duas pernas e assim por diante. Eu, particularmente, tenho razões de sobra para adorar essa decisão do Criador. Se eu não tivesse dois rins, não teria tido a oportunidade de sobreviver nesses mais de trinta anos, quando um deles começou a trabalhar desordenadamente, deu curto-circuito e precisou ser sumariamente extirpado. Bem, apesar de os órgãos serem duplos, fazem questão de demonstrar que são bem diferentes um do outro. Acha exagero? Então por que um sapato sempre fica mais justo num dos pés? E o anel, que no dedo da mão esquerda entra folgado, enquanto no da direita só sai passando sabonete? Não vamos esquecer também dos testes no oftalmologista – raramente o grau necessário a um olho é igual ao do outro. Quem quiser tirar a teima é só fazer o teste do rosto. Tampando verticalmente um dos lados com uma folha de papel ou semelhante, olhe atentamente o lado direito, depois o esquerdo: as desigualdades são tão grandes que não parecem integrar o mesmo rosto. É, é assim mesmo, os órgãos duplos têm sua própria personalidade, do mesmo jeito que gêmeos univitelinos.


Desde ontem essa reflexão – de indiscutível importância para a humanidade!! - bate e volta na minha cabeça. Penso no desentendimento que poderá ter havido entre meu pé direito e meu pé esquerdo. Habitualmente harmoniosos e companheiros, eles me advertem sobre obstáculos que encontram pelo caminho e, mesmo quando estou distraída, eles dão um jeito de enviar uma mensagem rápida ao cérebro acendendo a luz vermelha. Desta vez, não. Na descida de uma rampa discreta na porta do Banco do Brasil (aquele da reta da Penha), o pé direito fez seu trajeto corretamente e o esquerdo... ah, traidor!... o esquerdo se distraiu, pisou em falso, torceu e me jogou no chão feito uma jaca madura. Ai que dor! Que íntima motivação teria tido o desalmado pra me fazer uma coisa dessas? Terá sido medo de eu o levar pra cair no samba na curva da Jurema? Como foi capaz de pensar isso de mim? De agora em diante, vai perder a mordomia. Toda noite ele era o primeiro a ser massageado quando eu ia pra cama. Comprei até um creme à base de mentol, arnica e lavanda para deixá-lo mais fresquinho e repousado. Mal agradecido! Graças a esse atrevido, vou passar uma temporada me movimentando com a ajuda de um par de muletas. Imagine o que é sustentar oitenta quilos num pé só, pulando como um saci. O pé direito é que está pagando o pato, coitado. E tem mais: ainda tenho que colocar gelo muitas vezes ao dia e ficar o tempo todo de perna pra cima. Que isto sirva de lição a você também. Nunca confie num pé esquerdo tão cheio de si.

domingo, fevereiro 7

Um carnaval à procura de identidade


Bem, estive assistindo pela tv uma ou outra escola capixaba desfilar. Vamos combinar, nos últimos cinco, seis anos, a apresentação das escolas passou de um amadorismo sofrível a um profissionalismo pretensioso. É louvável o esforço para melhorar o nível e fazer dos desfiles um espetáculo apresentável. Mas ainda tem muito chão pra caminhar. Vi muita gente que parecia ter sido pega no laço para desfilar, mais preocupada em fazer pose para a câmara ou dar adeusinho pros amigos na arquibancada, sem nem fingir que estava cantando o samba ou dando alguns passinhos. Desfile é alegria e diversão, mas não é brincadeira. Nosso carnaval tem história e os compositores da velha guarda, ritmistas e sambistas das comunidades merecem ser respeitados. Fiquei pensando se é justo importar carnavalescos e técnicos do carnaval de Parintins ou do Rio de Janeiro, como ocorreu este ano. Da mesma forma, vale a pena trazer porta-bandeira e mestre-sala cariocas para fazer evoluções sem nenhuma garra no Sambão do povo? E o que dizer dos destaques ‘estrangeiros’ que desfilavam as caras fantasias nos pobres carros alegóricos? Vale tudo pelo espetáculo? E mais: ouvi dizer que até os sambas-enredo estão ganhando um tempero carioca. Isso, segundo o informante, profundo conhecedor do mundo do samba capixaba, descaracteriza as escolas, anula sua marca registrada. Conclusão: se as escolas não tomarem cuidado, muito em breve vão se transformar em sucursais das escolas cariocas. Isso, aliado à praga dos trios elétricos que há algum tempo animam as multidões nas principais praias do Estado, dá bem a medida da crise de identidade do carnaval capixaba, perdido entre a cariocarização e a baianização. Onde é que isso vai acabar?
foto: gazetaonline

Carnaval em duas etapas



Vitória talvez seja a única capital do Brasil que tem dois carnavais no mesmo mês, com intervalo de uma semana entre um e outro. Ou melhor, o carnaval é realizado em duas etapas: num fim de semana, tem o desfile das escolas no Sambão do Povo, a Sapucaí da cidade. No fim de semana seguinte, é o carnaval popular, com blocos de rua em vários bairros, bailes infantis, trio elétrico e praias cheias com muito barulho. Diz a lenda que essa invenção foi introduzida no calendário da folia capixaba nos idos de 1997 porque o então prefeito, que tinha estudado e trabalhado no Rio, freqüentava a Banda de Ipanema e desfilava por uma escola carioca. Assim, para poder cumprir sua agenda naquela cidade e não se ausentar da festividade na cidade que governava, propôs a antecipação do desfile em Vitória. Como o substancial patrocínio da Prefeitura, a Liga das Escolas de Samba não teve outra saída senão acatar. O prefeito foi reeleito e o carnaval antecipado prevaleceu por dez anos. O prefeito seguinte manteve o que já havia se tornado tradição. A Liga justifica dizendo que muita gente viaja durante o Carnaval e não teria sentido investir tanto num desfile para pouca gente apreciar. Pouca gente quem, cara pálida?

foto: gazetaonline

sábado, fevereiro 6

Quando a família se desfez




Quando a família se desfez, uma parte dela também se desintegrou junto. Era como se tivesse afundado num rio caudaloso e turvo. Por mais que tentasse, não conseguia manter-se na superfície. Se conseguia recuperar o fôlego, logo a correnteza a levava, jogando-a de encontro às pedras. Afundava e vinha à tona sucessivas vezes. Então agarrava com força a rala vegetação, para desfrutar de alguns momentos de paz, antes que o ciclo recomeçasse. Nesse vai-e-vem, sem que se desse conta, foi se fortalecendo. Até que um dia se viu em terra firme, livre do redemoinho das águas.


Quando a família se desfez, mal tinha saído da adolescência. Ah, se pudesse, desaparecia no mundo! Eles não tinham o direito de anunciar, assim, sem mais nem menos, que estavam se separando. Como ia voltar pra casa e encontrar um lugar vazio na mesa do almoço? Como ia ser a vida dali em diante? Ambiente pesado, grana regulada, mágoas e interrogações. Mais que nunca precisávamos umas das outras, mas a dor impedia os gestos de carinho, faltava força e confiança para dar o passo adiante.


Quando a família se desfez, entendeu, depois de muito sofrimento, que a vida não pára. Tratou de enfiar a cara nos estudos e entrar no mercado de trabalho. Não era a primeira nem seria a última filha de pais separados (embora isso não estivesse nos seus planos). Como tudo tem suas compensações, cedo aprendeu a enfrentar entrevistas de emprego, aceitar desafios e mostrar que sabia das coisas. Conviveu com superiores educados e superiores grosseiros, patrões competentes e patrões que estão no cargo por simples favor. Mas conheceu também gente do bem que lhe deu a mão, carinho, estímulo. Nesse caminho construiu boas amizades.


Quando a família se desfez, percebeu que sua vida ia dar uma guinada de 180 graus, claro. Mas não imaginava que a sorte a levaria para tão longe. Até que valeu de alguma coisa ter nascido por acidente em Lisboa. Pois foi justamente ali que se instalou, depois de um estágio de um ano numa cidadezinha próxima. Era um sonho: sozinha em plena Europa, num país estranho que fala uma língua parecida com a nossa, dona do seu nariz, construindo seu próprio destino. Ali trabalhou duro, montou sua casa e fez suas próprias escolhas. Viajou. Ganhou experiência, amadureceu emocionalmente, enfim, se transformou numa excelente administradora no ramo de petróleo. Viajou. Conheceu pessoas e aprendeu mais sobre a alma humana. Algumas vezes foi feliz.


Nesses mais de seis anos em que permaneceu do outro lado do oceano, a ponte com a mãe se consolidou. Ela, a mãe, se alegrou com as vitórias da filha, se afligiu com suas ansiedades, se preocupou a cada doença e se desesperou com o tornozelo fraturado que precisou ser fixado com duas placas de metal. Abraçaram-se virtualmente centenas de vezes e ao vivo, talvez uma meia dúzia. Orgulhou-se milhares de vezes da coragem da filha. E só segurava a saudade porque sabia que é assim que tem que ser, que “os filhos são para o mundo” e que os ganhos eram infinitamente maiores que as perdas.


“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus...” Chegou o tempo da recompensa. Chegou o tempo do reencontro. A filha está voltando para casa. E a mãe, vibrando de felicidade, abre os braços para recebê-la. Wellcome home, kid.