sábado, fevereiro 6

Quando a família se desfez




Quando a família se desfez, uma parte dela também se desintegrou junto. Era como se tivesse afundado num rio caudaloso e turvo. Por mais que tentasse, não conseguia manter-se na superfície. Se conseguia recuperar o fôlego, logo a correnteza a levava, jogando-a de encontro às pedras. Afundava e vinha à tona sucessivas vezes. Então agarrava com força a rala vegetação, para desfrutar de alguns momentos de paz, antes que o ciclo recomeçasse. Nesse vai-e-vem, sem que se desse conta, foi se fortalecendo. Até que um dia se viu em terra firme, livre do redemoinho das águas.


Quando a família se desfez, mal tinha saído da adolescência. Ah, se pudesse, desaparecia no mundo! Eles não tinham o direito de anunciar, assim, sem mais nem menos, que estavam se separando. Como ia voltar pra casa e encontrar um lugar vazio na mesa do almoço? Como ia ser a vida dali em diante? Ambiente pesado, grana regulada, mágoas e interrogações. Mais que nunca precisávamos umas das outras, mas a dor impedia os gestos de carinho, faltava força e confiança para dar o passo adiante.


Quando a família se desfez, entendeu, depois de muito sofrimento, que a vida não pára. Tratou de enfiar a cara nos estudos e entrar no mercado de trabalho. Não era a primeira nem seria a última filha de pais separados (embora isso não estivesse nos seus planos). Como tudo tem suas compensações, cedo aprendeu a enfrentar entrevistas de emprego, aceitar desafios e mostrar que sabia das coisas. Conviveu com superiores educados e superiores grosseiros, patrões competentes e patrões que estão no cargo por simples favor. Mas conheceu também gente do bem que lhe deu a mão, carinho, estímulo. Nesse caminho construiu boas amizades.


Quando a família se desfez, percebeu que sua vida ia dar uma guinada de 180 graus, claro. Mas não imaginava que a sorte a levaria para tão longe. Até que valeu de alguma coisa ter nascido por acidente em Lisboa. Pois foi justamente ali que se instalou, depois de um estágio de um ano numa cidadezinha próxima. Era um sonho: sozinha em plena Europa, num país estranho que fala uma língua parecida com a nossa, dona do seu nariz, construindo seu próprio destino. Ali trabalhou duro, montou sua casa e fez suas próprias escolhas. Viajou. Ganhou experiência, amadureceu emocionalmente, enfim, se transformou numa excelente administradora no ramo de petróleo. Viajou. Conheceu pessoas e aprendeu mais sobre a alma humana. Algumas vezes foi feliz.


Nesses mais de seis anos em que permaneceu do outro lado do oceano, a ponte com a mãe se consolidou. Ela, a mãe, se alegrou com as vitórias da filha, se afligiu com suas ansiedades, se preocupou a cada doença e se desesperou com o tornozelo fraturado que precisou ser fixado com duas placas de metal. Abraçaram-se virtualmente centenas de vezes e ao vivo, talvez uma meia dúzia. Orgulhou-se milhares de vezes da coragem da filha. E só segurava a saudade porque sabia que é assim que tem que ser, que “os filhos são para o mundo” e que os ganhos eram infinitamente maiores que as perdas.


“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus...” Chegou o tempo da recompensa. Chegou o tempo do reencontro. A filha está voltando para casa. E a mãe, vibrando de felicidade, abre os braços para recebê-la. Wellcome home, kid.

2 comentários:

  1. Obrigada mãe...
    Um dia espero sentir que sou tudo isso...
    Te amo!
    Até breve...
    May

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  2. Difícil comentar sobre algo tão pessoal e especial. Já li algumas vezes seguidas e, sinceramente, o coração apertadinho não consegue se expressar muito bem. Talvez porque eu ainda não saiba o significado da palavra saudade, ou porque eu sou apenas filha, e não mãe. Mas é inegável e admirável o carinho que desenhou cada palavra, Regina. Que força estranha é essa? Mãe é mãe, perto ou longe. Somos sempre crianças e seres indefesos. E sempre vamos precisar do calor do abraço de mãe, esse que é tão diferente de todos os outros. Consigo enxergar nesse trabalho de texto uma mãezona que tem amor e afeto pra vender, esperando a filhota voltar porque, na verdade, o que a mãe faz durante esse tempo é guardar toda energia do abraço. Quando a filha chegar, não vai querer desgrudar desse amor, quer apostar?

    Aproveite! Beijos.

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