domingo, janeiro 24

Metamorfose


Começou assim devagarzinho. Fugia do espelho, sempre achava que a imagem refletida não coincidia com aquela que viu pela última vez. Quase não saía de casa, não suportava o calor, que oscilava entre 35 e 40 graus. Quando era absolutamente necessário, saía à rua depois das seis da tarde com o sol começando a esfriar. Seu contato com o mundo se restringia às notícias filtradas pelos telejornais: escândalos, crimes, acidentes graves, catástrofes naturais, coisas do gênero. Ou a mais uma história de helena no horário nobre da emissora global. Começou a achar que havia um plano para acabar com a vida do planeta, algo como seres de outro planeta travestidos de governantes, que ganham a confiança do povo e depois a destroem inescrupulosamente. Roubos, mentiras, medidas enganosas, impostos escorchantes. Ano após ano as condições de vida pioravam e milhares de pessoas acreditavam o contrário. Os discursos enganosos pareciam anestesiar as consciências mais e mais. Decididamente já não via saída. Então teve crises de ansiedade, depressão, e, por último, síndrome do pânico. Fechada em casa, passava o dia conectada à internet, tentando encontrar alguma palavra de esperança. Nada lhe parecia verdadeiro, porém, nem mesmo as manifestações solidárias às vítimas de um terremoto que não deixou pedra sobre pedra num país latino americano. O telefone passava dias, semanas, sem tocar. Os amigos, desconfiados de que alguma coisa ia mal, se retraíram. A família já dava como um caso perdido. Ela começava a dar sinais de transtornos mentais. Começou a falar sozinha, o corpo vez por outra tremia. Um dia sonhou que estava feliz, no fundo do mar. Quando acordou, se deu conta de que tinha se transformado numa ostra.

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As pérolas são feridas curadas. As pérolas são produtos da dor. A pérola é o resultado da entrada de algo indesejável no interior da ostra, um parasita ou um grão de areia. A parte interna da concha de uma ostra é chamada nácar. Quando um grão de areia a penetra causa dor e sofrimento, porém as células do nácar começam a trabalhar, produzindo uma substância e cobrindo o pequeno grão de areia para proteger o corpo indefeso da ostra, formando, assim, a pérola.

2 comentários:

  1. Caramba... não sei o que falar. Tão delicado e... forte.

    Se continuar assim, chegará às mil e uma noites tranquilamente!

    Beijão.

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